terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

PEQUENA HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO

    

 O mito de Prometeu ressurge incessantemente, representando para alguns, simultaneamente uma vitória sobre os deuses, e um encadeamento no qual a Bíblia, no livro do Gênesis, conta o assassinato de Abel por seu irmão. O agricultor Caim, não coincidentemente, foi o construtor da primeira cidade e o primeiro metalúrgico. Temos aqui o ponto de partida do diálogo entre o homem animal e a técnica, criação de seu pensamento, marco histórico simultâneo com as descobertas da fundação das primeiras cidades e o nascimento do mundo que chamamos civilizado. (1)
     Leroi-Gourhan quando descreve o técnico como o mestre da civilização, por ser ele o mestre das artes do fogo, vê no artesão a figura de um “demiurgo escravizado, o qual funde as jóias que as mulheres de seus senhores vestem, forjam as armas que seus senhores usam, martela a baixela dos deuses, e que é ele quem, ao longo da história põe entre as mãos dos homens ‘capitais’ os meios de realizarem o triunfo do mundo artificial sobre a natureza A atmosfera de maldição em que, na maioria das civilizações, se inicia a história do artesão do fogo, é somente o reflexo de uma frustração intuitiva compreendida desde a origem”.
     A coincidência da primeira metalurgia com as primeiras cidades seria mais do que um fato do acaso, como acredita Gourhan; poderia também ser a afirmação de uma fórmula tecno-econômica, que contém já todas as consequências da história das grandes civilizações.
     Porém, o projeto simbolizado por Prometeu, que é o da liberação da criatividade, iniciativa e inventividade do ser humano, e que aparece muitas vezes com o nome de iluminismo ou de modernidade, continua intacto. Não se trata de ignorar os problemas trazidos pela modernização ou a seriedade dos assuntos atuais: o uso descontrolado dos recursos naturais, destruição do meio ambiente e profunda desigualdade entre países e grupos sociais, com tudo o que isto acarreta. Trata-se simplesmente de perceber que, se todas estas coisas negativas foram causadas pela liberação da inteligência humana, é só pela ação inteligente que elas poderão ser corrigidas.

QUE CARACTERÍSTICAS COMUNS CONFIGURAM AQUILO QUE CHAMAMOS DE CIVILIZAÇÃO?
     As civilizações construídas no passado podem parecer muito diferentes das modernas, mas que características elas têm em comum? Que similaridades existem entre as primeiras cidades e as nossas cidades de hoje? Já foi dito que ninguém até hoje foi capaz de pensar a civilização como o fez Platão:

O que causa o nascimento de uma cidade, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas;[...] Construamos pois, em pensamento, uma cidade cujos alicerces serão as nossas necessidades: o primeiro deles e o mais importante, consiste na alimentação, de que depende a conservação de nosso ser e da nossa vida. O segundo consiste na moradia; o terceiro, no vestuário e em tudo o que lhe diz respeito [...]. Mas como poderá uma cidade prover a tantas necessidades? Não será preciso que um seja agricultor, outro pedreiro , outro tecelão? Poderemos acrescentar um sapateiro ou qualquer outro artesão para as necessidades do corpo?[...] Então cada um deverá desempenhar a sua função para toda a comunidade.
     Com efeito o lavrador não deve fazer o próprio arado, se quiser que seja de boa qualidade, nem as outras ferramentas agrícolas; também o pedreiro não fará a sua ferramenta; o mesmo se dará com o tecelão e o sapateiro.[...] Desta forma, temos carpinteiros, ferreiros e muitos outros operários aumentando a população de nossa pequena cidade. Mas seria ainda maior se lhe juntássemos boiadeiros, pastores e outros, para que o lavrador tenha bois
para a lavra da terra; o pedreiro, os animais de carga para transportar materiais; o tecelão e o sapateiro, peles e lãs.[...] Mas se aquele que leva ao mercado seus produtos não conseguir se encontrar com os que querem fazer permutas, interromperá seu trabalho para ficar sentado no mercado esperando-os?[...] Logo esta necessidade dá origem à classe dos mercadores, e à de negociantes, os que viajam de cidade em cidade. Há ainda outras pessoas que prestam serviços: aquelas que, sem talento para outro tipo de serviços, são aptos para os trabalhos pesados; vendem sua força física e, como denominam salário o preço do seu trabalho, damo-lhes o nome de assalariados. Uma cidade que reunisse tudo isso já não seria tão pequena[...]creio que a verdadeira cidade deva ser a que descrevi como uma cidade sã [...] e a pátria que até então era de tamanho suficiente para alimentar seus habitantes, tornar-se-á pequena e insuficiente [...] Então seremos obrigados a tomar as pastagens e lavouras dos nossos vizinhos. E eles não farão a mesma coisa em relação a nós? Iremos então à guerra!... (A República, Platão – 427/347...” (A República, Platão – 427/347 a.C)

     Uma boa parcela do universo antropológico atual, partilha do pensamento de que não existiria uma característica única, comum a todos os seres humanos, em suas diversas culturas. Acreditam que não há aquilo que poderíamos chamar de ‘natureza humana’. A partir do exercício de Platão construindo sua civilização, seria interessante imaginar quais fatores - tais como inventar necessidades antes inexistentes, produzir artefatos ou ferramentas para atendê-las, tomar de outros, aquilo que não lhes pertence - poderiam fazer parte de “um quê” em comum, sempre presente no simples fato de ser humano.

A CONSCIÊNCIA DO HOMEM OCIDENTAL MODERNO E A CIÊNCIA
     A descoberta da psicologia é um acontecimento relativo às últimas décadas, embora em séculos anteriores já houvesse introspecção e inteligência suficientes para reconhecer e explorar o universo da psique. Pode-se dizer que o mesmo aconteceu com o conhecimento técnico. Os romanos já conheciam os princípios mecânicos e processos físicos que poderiam tê-los levado a construir uma máquina a vapor. A razão disso é que não conheciam a utilidade para tanto. A necessidade só surgiu com a excessiva divisão do trabalho e a especialização do penúltimo século, como tão bem o demonstrou Platão. Enquanto o homem vivia no seio do rebanho não tinha psique, nem precisava dela, com exceção de sua crença na imortalidade da alma. Mas é no estado de necessidade que o homem descobre a psique como algo que quer outra coisa, como algo estranho e até hostil.
     O homem da Idade Média via o mundo de modo bem diferente. Para ele, a terra era o centro do Universo, fixa e em repouso. Todos os homens eram filhos do Altíssimo e eram criados para a felicidade na eternidade. A ciência natural rasgou esse véu já há algum tempo, e com esse véu se foi sua infância. O homem moderno perdeu todas as certezas metafísicas da Idade Média, trocando-as pelo ideal de segurança material, e também percebeu que todo passo em direção ao progresso material parece significar uma ameaça cada vez maior de uma catástrofe ainda pior.
    A revolução que a consciência moderna sofreu em consequência das catástrofes da Segunda Guerra Mundial foi internamente acompanhada pelo abalo moral da fé em nós mesmos e em nossa bondade. Não se pode pressupor que o pano de fundo da psique ou o inconsciente só tenha desenvolvido esse aspecto nos tempos recentes. Provavelmente sempre foi assim e em todas as civilizações. Cada cultura tem seu próprio adversário. Mas nenhuma cultura anterior à nossa se viu constrangida a levar a sério essa realidade. Não há dúvidas, como afirma Jung (1), que o mal provém, em grande parte, da inconsciência ilimitada do homem, como também é verdade que um conhecimento mais profundo nos ajuda a lutar contra as causas psíquicas do mal, exatamente como a ciência nos tornou capazes de combater com êxito as adversidades externas.
     A época das descobertas, cujo cume e talvez tenhamos atingido pelo conhecimento completo da Terra, já não queria mais acreditar que os hiperboreanos eram monstros de um só pé ou coisa semelhante, mas queria saber e ver com os próprios olhos o que havia por trás dos limites do mundo conhecido.
     Hoje o homem moderno está no ápice, amanhã estará superado; é a última resultante de uma evolução antiquíssima, mas também é a pior desilusão de todas as esperanças da humanidade. Disso ele está consciente. Sabe muito bem que a ciência, a técnica e a organização podem ser uma benção, mas sabe também que podem ser catastróficas. Não seria exagero talvez, comparar a consciência moderna com a psique de um homem, que tendo sofrido um abalo fatal, caiu em profunda insegurança.

E DE AGORA EM DIANTE?
     Às 8h46 e às 9h03 do dia 11 de setembro de 2001, dois Boeings 767, com os tanques cheios de combustível com elevado índice de octano, chocaram-se contra as torres gêmeas do World Trade Center, deflagrando um espetáculo de devastação apenas visto no cinema. Não só as torres, mas cinco edifícios em torno delas ficaram totalmente destroçados. Um terceiro Boeing 757 foi lançado contra um dos lados do Pentágono em Washington. Esses três aviões que atingiram o alvo, fizeram desse ataque o ato mais ostensivo de terrorismo jamais perpetrado. O mundo – ao menos foi o que os comentaristas e jornalistas repetiram sem cessar – tinha mudado para sempre.(2) É certo que nossa percepção de civilização ocidental sofreu um cruel abalo com o ato dos terroristas: as imponentes e invioláveis metáforas de poder desmoronando em ruínas retorcidas e carbonizadas. Mas será que o mundo mudou, e mais ainda, para sempre? Aparentemente não.
     Nos tempos finais da guerra fria, a nova configuração das relações internacionais deixou um espaço para certos analistas: a de uma esperança um tanto messiânica de ascensão à paz universal e da constituição de uma nova ‘ordem internacional’. Porém, desde a metade dos anos noventa, essa esperança era colocada de lado e muitas teorizações se esforçavam em dar-se conta da perenidade de certos conflitos ou da eclosão de novas guerras.

CIVILIZAÇÃO, CONFLITOS E GLOBALIZAÇÃO
     Três fatos tiveram um impacto significativo sobre o debate intelectual e universitário. O primeiro está bem ilustrado pelas teses do jornalista Robert Kaplan ou de Enzensberger (3): a civilização é atacada por numerosos males, dos quais os mais nocivos são, além das novas pandemias, o fundamentalismo e a violência comunitária. O segundo fato se faz conhecer pelos trabalhos de Collier e R.R.Kaplan «The coming anarchy: How scarcity, crime, overpopulation, tribalism and disease are rapidly destroying the fabric of our planet» (The Atlantic Monthly, février 199) – onde propõem uma análise econômica dos conflitos civis, onde predadores (rebeldes) jogam um papel explicativo principal. O terceiro, sem dúvida o mais influente antes de 11 de setembro de 2001, estabelece uma diferença qualitativa entre antigas e novas guerras. Mary Kaldor (4) fala de uma convergência entre estes três fatos muito diferentes, e de uma problemática legítima sobre os conflitos que nos parecem contestáveis intelectualmente e perigosa em suas implicações. As características que ela atribui às novas guerras – quer dizer, as guerras surgidas desde o começo dos anos 80 com a primeira globalização - podem estar opostas às antigas guerras por três planos diferentes:

1- Ideologia versus identidade ou vida política: as novas guerras repousam fundamentalmente sobre mobilizações identitárias, em contraste com propostas ideológicas ou geopolíticas dos antigos. Mary Kaldor opõe essas políticas àquelas que se fundam sobre o que ela chama de ‘ideias’ – “As políticas de ideias suportam projetos para o futuro. Elas tendem a ser englobantes, incorporam tudo aquilo que sustenta as ideias em questão. [...] As políticas identitárias, são rapidamente fragmentadas, transformadas através do passado, e exclusivas".

2- Guerras com e para a população versus violências contra a população: assim que as guerras antigas se beneficiaram de uma forte sustentação popular, as novas seriam desprovidas desse benefício e não levariam isso muito em conta. Elas ao contrário, se distinguiriam por sua violência, às vezes extrema, contra civis. Os métodos das novas guerras constituiriam em efeito, um dos signos distintivos mais flagrantes – utilizando uma mistura de técnicas de guerrilha e de contraguerrilha, elas dão lugar a crimes de massa, evacuações forçadas, etc.

3- A economia das guerras - mobilização da produção versus ilegalidade e pilhagem: é ainda, segundo Mary Kaldor, sua economia que oporia as novas guerras às antigas. A economia sob as guerras anteriores era mais autárquica e centralizada, no entanto, nas novas guerras, é mundial, dispersa, transnacional e mobiliza, ao mesmo tempo, o mercado negro, a pilhagem, a ajuda exterior, a diáspora e a ajuda humanitária. Essa predatoriedade é fortemente internacionalizada, notavelmente corrompida sobre os circuitos do tráfico internacional.

     As guerras civis durante a primeira globalização e os conflitos pelas grandes causas, estiveram sempre casadas com outras, que remetiam às histórias de terror mais que as de mobilizações universalistas. Não parece possível fazer uma diferença de natureza entre ideias universalistas das guerras antigas e identitárias das novas. Seria necessário traçar uma linha de separação - a que grau de universalismo ou de particularismo? “A guerra fria terminou”. Para alguns, ela foi ganha sobre as ‘forças do mal’. Aos olhos dos liberais, a democracia triunfou, mesmo se seu reino tarde a chegar dentro de certas periferias, ou se – como pensa Kaplan – o mundo democrático civilizado deve se preparar ao assalto de novas ‘forças do mal’. Outros seguiram uma trajetória diferente. Depois de haver sustentado os movimentos de liberação do terceiro mundo, tardaram a dar-se conta que uma vez no poder, muitos se transformariam em ditaduras.
     Todos, porém, jovens ou antigos democratas, bem situados física e mentalmente “no coração do coração da ordem mundial”, estão convencidos que o emprego da violência leva necessariamente à perversão de objetivos, mesmo nobres. Consideram que sempre há melhores meios do que a guerra dentro de uma nova ordem internacional, mais civilizada. Em todo caso vale recordar que os conflitos não se caracterizam somente pelo estado de guerra. Existem batalhas tão predatórias e tão destruidoras quanto uma guerra, revestidas de uma outra aparência, como por exemplo o domínio econômico internacionalizado, a dependência tecnológica entre dominantes e dominados, com a imposição de regras de benefício unilateral aos menos desenvolvidos, que disponibilizam o saque de seus recursos naturais e sua força de trabalho. São guerras sem armas nem sangue, conquistadores sem uniformes, que nem por isso deixam de causar os mesmos efeitos. O colonialismo nunca terminou, só mudou de roupa. (Sevcenko, 2001)

CONSIDERAÇÕES
     Retomando Leroi-Gourhan, temos uma imagem bastante pessimista sobre nossos destinos, enquanto civilização:

“Se projetarmos no futuro os termos tecno-econômicos da atualidade, podemos terminar em uma vitória total, esgotado o último poço de petróleo a fim de cozinhar o último punhado de ervas, comidas com o último rato...”

     Um dos maiores fantasmas, onipresente nas conjecturas sobre o futuro da civilização é sem dúvida a provável ‘perda do controle’ sobre os avanços frenéticos da ciência e da tecnologia, e o seu uso inconsequente e imediatista. Não faltam estimativas proféticas ao estilo apocalíptico, como também, otimistas e irresponsáveis. Mas talvez seja possível atribuir à humanidade um crédito ao seu bom senso, pois da mesma forma que fomos providos do sentido da guerra e do mal, fomos também providos do sentido de ‘humanidade’.
     Ali mesmo no Gênesis, no quarto capítulo, estão os dezesseis versículos que contam o desentendimento de Caim com Deus pela rejeição sofrida em relação a seu irmão Abel. Na versão do Rei Jaime, a partir do original em hebraico, Jeová diz a Caim: “Se praticares o bem, poderás reabilitar-te. E se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te. Mas tu o dominarás.” Esse “tu o dominarás” impressiona, porque é uma promessa de que Caim venceria o pecado. Na bíblia americana porém, essa passagem é de outra maneira: “ Tu deverás dominar o pecado.” Isso é muito diferente, pois não se trata mais de uma promessa e sim de uma ordem! John Steinbeck (prêmio Nobel de Literatura de 1958), em seu épico “A leste do Éden” (maravilhosa crítica da sociedade americana) se perguntava quem as escreveu e quais seriam as palavras originais a partir das quais foram feitas as traduções. Não havia nenhuma confusão na intenção do autor do Gênesis - por certo um ser "humano". Trata-se de um versículo muito mais importante do que possa parecer num primeiro momento, pois aí repousa o cerne de muitos dos conflitos humanos ocidentais. A palavra original hebraica era “timshel” – poderás! Poderás dominar o pecado!
     A tradução americana ordena aos homens que triunfem sobre o pecado, considerando-os seus subordinados e o pecado, uma ignorância. A tradução do Rei Jaime faz uma promessa no ”dominarás”, onde os homens seguramente triunfarão sobre o mal (ou sobre qualquer outra coisa). O seu destino está traçado e não há "vontade". Mas “timshel” - poderás - oferece uma escolha que pode ser, segundo Steinbeck, a palavra mais importante do mundo. Indica que o caminho está aberto. O “poderás” torna o homem grandioso e lhe dá uma estatura igual a dos deuses. É a glória da escolha e o peso da responsabilidade sobre ela - é o que faz do homem um homem.
     Gourhan sugere que perdemos o total controle sobre a tecnologia e a ciência. Deveríamos então levar em conta nossa capacidade infinita de inventar. E se destruirmos nosso adorável planeta azul, poderíamos pensar em colonizar outro planeta qualquer. Tecnologia e imprudência suficientes para tal por certo não faltariam. Relembrando Platão, já que estaríamos sem condições de nos manter no espaço que temos disponível, vamos tomar o que é dos outros (ou de ninguém), em algum outro ponto do universo.
     Mas talvez seja preferível manter nossa paz de espírito e a disposição de seguir em frente - e para isso, escolher a visão menos fatalista de C.G.Jung:

O fundo da psique é natureza e natureza é vida criadora. É verdade que a própria natureza derruba o que construiu, mas vai reconstruir de novo. Os valores que o relativismo moderno destrói no mundo visível, a psique no-los restitui. De início só vemos a descida na obscuridade e na fealdade, mas aquele que é incapaz de suportar este espetáculo também não conseguirá jamais criar a luminosidade e a beleza. A luz sempre nascerá da noite, e nenhum sol jamais ficou imóvel no céu porque uma tímida aspiração humana se engatou nele(5).


Notas:
(1) Leroi-Gourhan, Andre, O gesto e a palavra, Edições 70, Lisboa, 1964
(2) Rykwert, Joseph, A Sedução do Lugar- A história e o futuro da cidade, Martins Fontes, 2004
(3) H.M. Enzensberger, Civil Wars. From L.A. to Bosnia, New York, Free Press, 1994.
(4) M. Kaldor, New and Old Wars. Organized Violence in a Global Era, Cambridge, Polity Press, 1999.
(5) Jung C.G, Civilização em Transição , Ed.Vozes, 2000

BIBLIOGRAFIA:
CORREIA, Beatriz S.; SILVA, Maclovia C. Pequena História da civilização. Revista Educação & Tecnologia. p.68-80. Curitiba:TEMA/UTFPR, 2010.
LANDES, David S., Prometeu Desacorrentado: transformação tenológica e desenvolvimento industrial na Europa ocidental, desde 1750 até nossa época. Ed. Nova Fronteira, 1994
MORE, Thomas, A Utopia. Ed. Martin Claret, 2005
PLATÃO, A República, Trad. MHR Pereira. Fundação Calouste, Gulbenkian, Lisboa ,1993
SEVCENKO, N. (2001). A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras (Virando séculos; 7) www.ceri-sciencespo.com/publica/ critique/article/ci18p91-112.pdf - Les guerres civiles à l’ère de la globalisation
STEINBECK, John, A Leste do Éden. Ed. Record, Rio de Janeiro, 2005

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

RETROFIT ARQUITETURAL


RETROFIT ARQUITETURAL
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Considerando que a arquitetura atende às necessidades das pessoas em conjuntura histórica e social, as edificações vão perdendo a sua finalidade e necessitam de adequação no tempo e no contexto da atualidade: usos, normas, tecnologias e funcionalidade. Existe um serviço de renovação nomeado de retrofit que mantém as características originais do prédio, prolonga sua vida útil e pressupõe uma interferência integral.
A renovação de elementos arquitetônicos demanda a instalação de dispositivos técnicos fabricados em tempo diverso dos existentes. Dessa forma, arquitetos estabelecem relações entre o uso da ferramenta do retrofit e as inovações tecnológicas. Quando os recursos tecnológicos aplicados aos projetos inserem-se na realidade das condições do edifício, surge um novo campo de atuação para que o profissional possa dar uma utilização adequada às velhas edificações.

Cabe aos gestores da construção civil, em particular aos que irão embrenhar-se na recuperação, manutenção e restauração de edifícios, considerarem que os aspectos ambientais de uma construção são tão relevantes quanto os aspectos técnicos e econômicos, considerando que mesmo um retrofit causaria impacto no meio natural. Assim, adotarem uma postura técnica que contribua para minimizar tais impactos utilizando tecnologia limpa e não poluente utilizada em pequena ou grande escala que possua a possibilidade de ser absorvida pela sociedade como um todo (MORAES; QUELHAS, 2012, p. 451).

A forma como se resgata a memória histórica de um imóvel é outro aspecto das atuações sobre os processos de decomposição de um edifício.  Halbwachs (2015) adverte que a história não é tudo que fica no passado, pois existe uma história viva que se imortaliza ou se reaviva no tempo produzindo novos modelos. Na cidade de Presidente Prudente, no Estado de São Paulo, arquitetos fizeram ressurgir elementos da memória histórica do período modernista (1950) retratado em uma residência por meio da técnica do retrofit.

Projeto de reforma e interiores de uma residência com características modernistas na cidade de Presidente Prudente, elaborado para a disciplina de interiores comercial, da pós- graduação de arquitetura de interiores, em parceria com as Arquitetas Camila Zorato e Natâni Rumin. Esse projeto visa realizar um retrofit sem criar um falso-histórico, portanto, buscou-se preservar os elementos modernistas e elementos históricos da residência, restaurando-os, como o revestimento de pastilha, pilotis e o piso de taco, e realizar uma intervenção contemporânea, porém mantendo o equilíbrio entre os elementos, resultando no projeto do Café Retrô (PORTFÓLIO, 2015).

O conceito de memória, segundo o filósofo e sociólogo Maurice Halbwachs (2015), remete às recordações e lembranças individuais armazenadas. Estas, porém, nunca estão descontextualizadas de testemunhos de um grupo específico que reforça ou enfraquece uma informação. Não se pode negar a subjetividade de reflexões, contudo ela tem limites. Existem laços sociais que materializam discursos individuais e compartilham identidades e significados.
Para a arquiteta Lina Bo Bardi a intenção do retrofit é interferir em uma construção existente utilizando a linguagem contemporânea. Ela explica o que seria o cerne do retrofit: "Na prática, não existe o passado. O que existe hoje e não morreu é o presente histórico. O que você tem que salvar - salvar não, preservar - são certas características típicas de um tempo que pertence ainda à humanidade" (VERNILO et al., 2015, p. 937).
Jacques Le Goff, historiador francês, reconhece o trabalho de Halbwachs para buscar conceituar aspectos deste tempo e acrescenta a ideia de existirem lutas pelo poder com o intuito de selecionar lembranças que permanecem nas relações contínuas entre o presente e o passado. Lavabre (2015), em seu artigo sobre usos e desusos (mesusages) dá uma noção de memória e afirma que o conceito resiste às polissemias, às cronologias de significações, à falta de consensos, críticas, e que esse conceito, apesar de tudo, continua existindo como fenômeno social.

Souvenir de l’expérience vécue, commémorations, archives et musées, mobilisations politiques de l’histoire ou “invention de la tradition”, monuments et historiographies, conflits d’interprétation, mais aussi oublis, symptômes, traces incorporées du passé, occultations et falsifications de l’histoire: la “mémoire” embrasse décidément trop et signale par là-même le caractère métaphorique de son usage (LAVABRE, 2015, p. 48)[1].

A memória individual, impregnada de tudo citado pela autora, é uma atividade construtiva e racional da mente, com suas dimensões imaginativas e sensoriais, composta de sentimentos, palavras e ideias, esboça pontos de vista de um ambiente e de relações estabelecidas entre os integrantes de um grupo.
Quanto mais inseridos estão os sujeitos em um grupo, mais condições eles têm de retomar “as suas memórias como também de contribuírem para a recuperação e perpetuação da memória do grupo” (LEAL, 2015, p. 6), agregando pareceres e relatos que os identificam. O passado é reconstruído a partir do presente, direcionado pela vontade de organizar as representações.   

A identificação de um contexto temporal que particulariza aquele acontecimento diante de muitos outros pode possibilitar que ele seja lembrado por meio de vestígios que se destacam quando pensamos no momento em que ele ocorreu. Nas palavras de Halbwachs (2006, p. 156), “os limites até onde retrocedemos assim no passado são variáveis segundo os grupos e é o que explica porque os pensamentos individuais conforme os momentos (...) atingem lembranças mais ou menos remotas” (LEAL, 2015, p.6-7).
O retrofit é uma ferramenta de revitalização que faz uso das tecnologias dos materiais para manter lembranças perdidas e atender às necessidades de eficiência e conforto dos usuários da cidade. Nas práticas, são empregados recursos diversos daqueles aplicados em reformas para modernizar e readequar instalações e equipamentos. A forma de trabalhar diferenciada da convencional enfrenta os desafios dos riscos, da imprevisibilidade, da produtividade, do planejamento e da mão-de-obra.
No conceito do termo retrofit estão presentes duas ações obrigatórias que o caracterizam na ambientação: (a) mudança de uso; e (b) renovação do que era retrógrado com a permanência da obra arquitetônica. Em outras palavras, pode-se dizer que uma história esconde-se atrás de novas obras e fica coerente com o presente. Seria como dar validade a estruturas e fundações de qualidade de uma edificação que estava esquecida, abandonada, deteriorada... Um exemplo ilustrativo é o caso “Saúde · Retrofi­t”, uma obra realizada para o IX Grande Prêmio de Arquitetura Corporativa.

A proposta arquitetônica do projeto apresentado pela DASA tem como foco o bem-estar do paciente. Há uma atenção especial aos espaços de espera, estar e contemplação, marcados pela diversidade de materiais cujo objetivo é amenizar o caráter institucional e impessoal que normalmente os ambientes de saúde apresentam. A decoração deixa bem clara a intenção, de mesclar o antigo e novo, respeitando a riqueza da arquitetura do edifício - um casarão de estilo eclético, tombado em nível municipal no ­final do século XX. (MORAIS, 2015, p. 34).

            O retrofit pode também estar refletido além da arquitetura também na decoração, pois ao mesmo tempo dissolve as finalidades projetadas para edifícios históricos sem deixar de falar do seu passado e cogitar seu futuro. São readaptações que portam e ostentam títulos como indústria, palácio, clube, hípica e outros, mas que têm usos internos pendentes, imprevisíveis e incompletos que dependem de manutenção e consumo.  Sem deixar de representar a arquitetura da época, a plástica contribui para que ele permaneça no tempo e no conjunto urbano. “O propósito do retrofit [é] a renovação arquitetônica do edifício e a ampliação dos espaços internos para atender uma maior demanda da empresa, [instituição] ocupante” (WERTHEIMER, 2015, p. 43). No retrofit feito na sede corporativa da Roche Pharma

[...] foi adicionado ao edifício original, um novo pavimento construído em estrutura metálica com a inclusão de um grande pórtico para valorizar a entrada e a recepção. Elementos não estruturais de fachada foram removidos, possibilitando maiores vãos com esquadrias e vidros de última geração, maximizando o aproveitamento da iluminação natural e a apreciação do jardim. Uma nova prumada de elevadores foi criada para adequar o fluxo vertical ao aumento da área útil dos pavimentos, tendo sido também necessária a criação de uma nova escada de emergência. Todas as instalações e infraestruturas foram modernizadas. De forma inovadora, o projeto alia modernidade e conforto. O pavimento térreo abriga áreas para visitantes, salas de reunião multifuncionais, cafés e pátios internos para reuniões informais e descanso (WERTHEIMER, 2015, p. 43).

            A passagem do tempo nos diz que o edifício pode ou não permanecer atraente. Então, seriam necessárias ações de renovação e mudança de uso para adquirir outra representatividade? Sim, pois o objeto arquitetônico perdeu sua função e o espaço não mais condiz com as exigências técnicas e as normas de segurança. Todavia, as adequações construtivas, preservando sua originalidade, são feitas a partir de estudos criteriosos de viabilidade que giram em torno de custos e benefícios.
No projeto da arquiteta Betty Birger - um centro de treinamento regional do SEBRAE na cidade de São Paulo - exemplifica os diferenciais encontrados em um projeto de retrofit comparado aos de uma reforma[2]. O desafio foi “metamorfosear” um edifício tradicional de oito andares em um centro multidisciplinar para capacitar e formar os integrantes do Serviço Brasileiro de Apoio de Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). Este espaço visa prover pessoal treinado, incluindo a oportunidade de reciclar saberes e conhecimentos, motivadores do desenvolvimento pessoal e profissional.

O novo ambiente deveria refletir os conceitos da empresa que é inovadora, de vanguarda, empreendedora, referência e conectada. Os espaços foram projetados visando a criação de recintos que estimulem a integração e inovação, sustentáveis, inspiradores, flexíveis e agradáveis. Adotamos como diretrizes: ambientes saudáveis (luz do dia / vista, ar, temperatura); espaços e materiais sustentáveis; efi­ciência de energia; “Future proofed” – capacidade para crescer e diminuir; móvel / mutável; o espaço refletindo a imagem e cultura da empresa; acessível, confortável e atrativo (BIRGER, 2015, p. 43).

É preciso que o retrofit, enquanto conceito aplicado na arquitetura urbana valorize o imóvel e mude sua aparência envelhecida, sobretudo aqueles situados em locais onde o potencial construtivo está esgotado. Por isso, fazem parte desta técnica ações de demolição de partes da construção existente, o reforço estrutural, os fechamentos internos, os acabamentos, as substituições na rede hidráulica, elétrica e telefônica, a climatização e intervenções nas fachadas e nos pisos.
Estas mudanças também reduzem a carga térmica, o consumo de água, energia e as emissões de CO2, quando privilegiados os materiais modernos como as placas solares, recursos de controle solar (brises), sistemas de aproveitamento das águas pluviais, iluminação e ventilação naturais, o uso de técnicas e diversidade de materiais da construção sustentável.  Mantém-se o compromisso com as características da arquitetura original, simultaneamente renova-se a estrutura e potencializa-se seu desempenho predial, compatibilizando-a com as restrições urbanas e ocupacionais.
Outras ideias que estão na raiz do conceito de retrofit transcorrem por soluções corretivas, atualização tecnológica, preservação da identidade, viabilidade econômica para o investidor e incorporação produtiva do edifício no conjunto urbano.  O conceito se aplica também em grandes áreas urbanas e construções que apresentam limitações estruturais e necessitam adequações geográficas e físicas.
Também chamado de reciclagem tecnológica, esta modalidade construtivo-arquitetônica se aplica a qualquer tipo de edificação. É uma alternativa sustentável de renovação, sobretudo para aqueles imóveis bem localizados, patrimônios históricos e marcos importantes, muitas vezes ícones socioculturais.  
Em 1997, o governo dos Estados Unidos da América escolheu o retrofit para a modernização de um dos edifícios mais icônicos da história americana: o Pentágono. O maior edifício administrativo do mundo era então um dinossauro tecnológico, muito próximo da morte, com instalações elétricas, hidráulica e lógica em ruínas, as quais continham inúmeros materiais tóxicos como amianto e mercúrio, entre outros. Sua reabilitação estrutural e tecnológica nos moldes de um retrofit custaria mais do que o dobro da opção de fazer uma nova casa. Apesar dos custos, a opção do governo baseou-se no indiscutível valor histórico e simbólico do edifício. O artigo de Evey (2015), fala de seu papel na direção das obras de retrofit, quando pôde verificar como as pessoas estavam convencidas do forte significado deste imóvel para o povo americano.

As the former manager of the Pentagon Renovation Program, I have often listened as people have related […] their vivid memories of September 11, 2001[…]. More than U$4 billion were designated for these program, the largest design and construction program of its type in U.S. history […] One truth gave me hope: I was convinced that people strive and succeed not just for money and not just because a book of regulations tells them to. They strive when they believe in a cause and are led by people who share that belief and are willing to personally sacrifice to reach those common goals (EVEY, 2015)[3].


            Entretanto, o projeto de retrofit do Pentágono tomou uma importância muito maior com o advento dos ataques terroristas de 2001.  Aos planos iniciais foram adicionadas ações de segurança antes não previstas, tais como vidros térmicos antibombas, paredes de concreto duplicadas e uma tela interna que amparasse estilhaços de alvenaria. Pode parecer ilógico, mas o edifício do Pentágono levou 16 meses para ser construído, e no entanto, exigiu 16 anos para ser modernizado. Uma obra hercúlea baseada mais no valor sentimental de uma nação do que propriamente no sentido prático e financeiro, o que vem a corroborar com ideia de preservação e conservação de valores culturais e simbólicos por grupos relevantes ou mesmo uma nação inteira.
           




[1] Lembrança de experiência vivida, comemorações, arquivos e museus, mobilizações políticas da história ou “invenção da tradição”, monumentos e historiografias, conflitos de interpretações, mas também esquecimentos, sintomas, traços incorporados do passado, ocultações e falsificações da história: a “memória” abraça decididamente, em excesso, e assinala por aqui mesmo o caráter metafórico de seu uso (tradução livre).  
[2] Reforma é o “ato ou efeito de reformar; mudança para melhor; melhoramento; conserto; reparação; modificação; reorganização, substituição de objetos fora de uso; nova forma, intervenção que busca o retorno à função original [...] sem preocupação quanto à  preservação” (FLEMMING; QUALHARINI; 2015, p. 5).
[3] Como o ex-gerente do Programa de Renovação do Pentágono, muitas vezes tenho escutado como as pessoas têm relacionado [...] às suas memórias vívidas de 11 de Setembro de 2001 [...] mais de U$ 4 bilhões foram destinados ao projeto, o maior programa de concepção e construção de seu tipo na história dos EUA [...] Uma verdade me deu esperança: eu estava convencido de que as pessoas se esforçam pelo sucesso não apenas por dinheiro, e não apenas porque um livro de regulamentos lhes diz isso. Elas se esforçam quando acreditam em uma causa e são lideradas por pessoas que compartilham essa crença e estão dispostas a se sacrificarem pessoalmente para alcançar objetivos comuns (Evey, 2015).

BIBLIOGRAFIA:
BIRGER, Betty.  Centro empreendedor. Disponível em: <http://www.flexeventos.com.br/_pdfs/publicacoes/arquishow-721.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2015.
EVEY, Walker Lee. The Secrets to the Pentagon Renovation Program's Success. How one of the nation's largest reconstruction projects was completed ahead of schedule and under budget. Disponível em: <http://www.constructionbusinessowner.com/management/workforce-management/september-2014-secrets-pentagon-renovation-programs-success>. Acesso em: 3 mai. 2105. 
HALBWACHS, Maurice; DÍAZ, Amparo Lasén.  Memoria colectiva y memoria historica. Disponível em:
<http://www.jstor.org/discover/10.2307/40183784?sid=21106328522163&uid=2&uid=3737664&uid=4>.  Acesso em: 23 mar. 2015.
LAVABRE, Marie-Claire. Usages et mésusages de la notion de mémoire. Disponível em:
<http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/criti_1290-7839_2000_num_7_1_1560>. Acesso em: 16 abr. 2015.
LEAL, Luana Aparecida Matos. Memória, rememoração e lembrança em Maurice Halbwachs. Disponível em:
<http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao18/artigos/045.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2015.LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Ed. Unesp,1997.
MORAES, Virgínia Tambasco Freire;     QUELHAS, Osvaldo Luiz Gonçalvez. Desenvolvimento da metodologia e os processos de um “retrofit” arquitetônico. Sistema & Gestão, n. 7, 2012, p. 448-461. 
MORAIS, Leonardo. Laboratório lâmina: DASA – gestão de projetos e obras. Disponível em: <http://www.flexeventos.com.br/_pdfs/publicacoes/arquishow-721.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2015.
PORTFÓLIO - Proposta retrofit rara residência modernista. Disponível em: <http://auemrede.au.pini.com.br/emrede/membro/thays-carolina-carrion-lorente/proposta-retrofit-para-residencia-modernista-17670.asp>. Acesso em: 24 abr. 2015.


DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE
Prêmio Nobel de 1998, nascido em Santiniketan, na Índia em 1933, economista e filósofo, formou-se pela Universidade de Cambridge (1952), Amartya Kumar Sen notabilizou-se por seus trabalhos sobre a economia do bem-estar social. Quando de seu retorno à Índia, deu conferências na Universidade de Jadavpur e tornou-se professor da Escola de Economia de Délhi.
Sen, intensamente marcado pela fome que ainda atinge seu país aprofundou seus estudo nas economias dos países em desenvolvimento e as condições de vida das populações mais pobres do planeta. Em 1981 escreveu seu livro mais conhecido, “Pobres e Famintos: Um Ensaio sobre Direito e Privação”. Em 1999 publicou “Desenvolvimento como Liberdade”, foco principal deste aporte teórico.
Analisando catástrofes na Índia, em Bangladesh, na Etiópia e no Saara africano, Sen demonstra que até quando o suprimento de alimentos não é significativamente inferior comparado ao de anos anteriores, pode ocorrer privação e fome. Sua conclusão é que a escassez de comida não constitui a principal causa da fome como acreditam os acadêmicos, e sim a falta de organização governamental para produzir e distribuir os alimentos.
Hoje o autor é reitor da Universidade de Cambridge é ainda professor de universidades da Europa, dos Estados Unidos e da Ásia. Intelectual cujos múltiplos interesses são entrelaçados por um humanismo incondicional.
Entendendo as desigualdades do mundo contemporâneo como principais obstáculos ao seu desenvolvimento humano e social, Sen realiza uma verdadeira anatomia dos fundamentos da injustiça, em que aponta as contradições das correntes jurídicas atualmente dominantes. Oferece uma nova visão acerca de conceitos tais como miséria, pobreza, fome e bem-estar social.
Para Amartya Sen, o desenvolvimento tem que estar relacionado, sobretudo com a melhora da vida dos indivíduos e com o fortalecimento de suas liberdades. Explica como o desenvolvimento depende também de outras variáveis, além das tradicionais citadas anteriormente, ampliando assim, o leque de meios promovedores do processo de desenvolvimento. Dessa forma o autor aponta, além da industrialização, do progresso tecnológico e da modernização social, as disposições sociais e econômicas, a exemplo dos serviços de educação e saúde, e os direitos civis, tal qual a liberdade política, como exemplo de fatores de promoção de ‘liberdades substantivas’.
O êxito de uma sociedade deve ser avaliado através das liberdades substantivas que os indivíduos dessa determinada sociedade desfrutam. Tal modelo de avaliação do êxito de uma sociedade difere do modelo de avaliação clássico, que se foca apenas em variáveis como renda real.
Sen fala sempre de “liberdades substantivas”. Tais liberdades seriam os frutos do desenvolvimento, em que a falta de disposições sociais e econômicas, tais como os serviços de saúde e educação, limitam a atuação livre dos cidadãos impedindo-os de se alimentarem adequadamente, adquirirem remédios e tratamentos, obterem conhecimento e instrução e uma variedade de opções de formação técnico-profissionalizante.
Um indivíduo tem sua liberdade limitada quando enfrenta tais carências, às vezes obrigado a viver em condições degradantes, sem perspectivas de alcançar idades mais avançadas ou de participar de maneira atuante na política, a exemplo do modelo proposto por Jürgen Habermas (1994) acerca da cidadania deliberativa, no qual os atores sociais devem deliberar em conjunto na elaboração e implantação das políticas públicas.
O desenvolvimento, segundo Amartya Sen, não pode ser analisado apenas segundo o modo tradicional restritivo do crescimento do PIB e da renda. Lança alguns exemplos para demonstrar essa teoria, que põem em cheque a eficácia desse tipo de perspectiva e ilustram sua teoria do desenvolvimento como liberdade. Para o autor:
O que as pessoas conseguem realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras, como boa saúde, educação básica, incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas (SEN, 2012, p. 18).

A liberdade procedente desses arranjos institucionais é influenciada pelos próprios atos livres dos agentes, como uma via de mão dupla, diante da liberdade de participar de escolhas sociais e tomadas de decisões públicas, que conduzem o avanço dessas oportunidades. As liberdades constitutivas, como a liberdade de participação política, de receber educação básica e assistência médica, não apenas colaboram para o desenvolvimento, como são decisivas para o fortalecimento e expansão das próprias liberdades constitutivas.
De maneira inversa, a limitação de uma liberdade específica, tal como uma privação de liberdade econômica, por pobreza extrema, por exemplo, contribui para a privação de outras espécies de liberdade, como a social ou a política, tornando esse processo um encadeamento no qual há influências recíprocas e interligadas. Para Sen, as liberdades denominadas como “instrumentais” (liberdades políticas, econômicas, sociais, garantias de transparência e segurança protetora) têm a capacidade de ligarem-se umas às outras contribuindo com o aumento e o fortalecimento da liberdade humana de modo geral.
A análise que faz acerca do desenvolvimento contempla particularmente a expansão das “capacidades” das pessoas no sentido de terem condições de levar o tipo de vida que valorizam, as quais não são necessariamente comuns a todos. Essas capacidades podem ser aumentadas pela política pública, mas a direção desta política pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas dos indivíduos. Essa relação de certo modo dialética é fundamental em todo o processo proposto pelo economista.
Ponderando e comparando os níveis de renda de grupos populacionais dos Estados Unidos, por exemplo, Sen aponta como a população afro-americana é relativamente mais pobre que a de americanos brancos, mas muito mais ricos quando comparados com habitantes oriundos do chamado Terceiro Mundo. Todavia, os afro-americanos têm chances absolutamente menores de alcançar idades mais avançadas quando comparados a esses mesmos habitantes do Terceiro Mundo, como China, Sri Lanka ou partes da Índia, ainda que possam se sair melhores em termos de sobrevivência nas faixas etárias mais baixas.
A explicação para esses contrastes decorrem de disposições sociais e comunitárias como cobertura médica, serviços de saúde públicos, educação escolar, lei e ordem, prevalência de violência, entre outros. Comparando tais grupos diante desta perspectiva, fica evidente que os afro-americanos são, nesse caso, mais excluídos e limitados no que se refere à liberdade do que os chineses ou indianos, ainda que detenham maior renda quando comparado a estes mesmos grupos. Este exemplo é terminante para apreender o significado legítimo do desenvolvimento. Mostra o quanto percepção e avaliação de desenvolvimento ficam limitados quando aferidos unicamente através da renda.
Amartya Sen em nenhum momento deixa de lado a importância dos mercados para o processo de desenvolvimento, tampouco de sua contribuição para o elevado crescimento e progresso econômico. No entanto, alerta que aceitar que sua contribuição influenciaria somente o crescimento econômico seria restringir o papel dos mercados, pois a liberdade de troca e transação é ela própria uma parte essencial das liberdades básicas que as pessoas têm razão para valorizar:
A contribuição do mecanismo de mercado para o crescimento econômico é obviamente importante, mas vem depois do reconhecimento da importância direta da liberdade de troca – de palavras, bens, presentes. (...) a negação do acesso aos mercados de produtos frequentemente está entre as privações enfrentadas por muitos pequenos agricultores sujeitos à organização e restrição tradicionais. A liberdade de participar do intercâmbio econômico tem um papel básico na vida social (SEN, 2012, p. 20,21).

Significa que, entrar em mercados livremente, em contraposição ao trabalho por coação, ou por falta de outra opção, contribui por si só, e é fundamental para o desenvolvimento, independentemente de suas influências para a promoção do crescimento econômico ou para a industrialização.
Amartya Sen realiza seus estudos observando sistemas políticos diversos, incluindo os modelos ditatoriais. Por essa razão aponta o sistema político democrático como a ponte mais adequada em direção a uma das liberdades principais, a liberdade política. O autor demonstra que no modelo democrático os demais tipos de liberdade podem ser fortalecidos e que nesse sistema é nula a ocorrência de ‘fomes coletivas’ ente outros desastres econômicos. Há pobreza, pobreza extrema, mas nunca fome coletiva, o que de fato ocorre em muitos governos totalitários.
Esses fenômenos negativos são imensamente maiores em países com regimes ditatoriais e opressivos. Governantes ditatoriais não são estimulados a tomar medidas preventivas acerca dessas questões, pois não precisam apresentar projetos para vencer eleições, ao contrário do que acontece num ambiente democrático.
Pessoas sem liberdades políticas ou sem direitos civis estão privadas de liberdades importantes para conduzir suas vidas e de participar de decisões terminantes ligadas a assuntos públicos, restringindo suas vidas social e politicamente. Desse modo, todos os tipos de privações devem ser considerados repressivos, mesmo que não acarretem outros males.
Amartya Sen encontra uma metodologia bastante distinta das tradicionais para entender o processo do desenvolvimento. Faz uma aproximação com a filosofia de Aristóteles no que se refere à riqueza (que por si própria não seria o bem que os homens almejam, e sendo sua utilidade avaliada tão somente diante de sua capacidade de obter alguma outra coisa). A riqueza por si só não seria o alvo de interesse real (ou primeiro) dos indivíduos, mas sim as experiências e estilos de vida com os quais a riqueza estabelece pontes.
As liberdades, dessa forma, precisam ser encaradas idealmente como meios e fins ligados ao desenvolvimento, de modo a alcançar um grau de liberdade consolidado que possa vir a ser cada vez mais usufruído pelos indivíduos. A abordagem geral se concentra nas capacidades de as pessoas fazerem coisas que elas têm razão para prezar e na sua liberdade para levar um tipo de vida que com razão valorizam.
Em “Desenvolvimento como Liberdade”, a perspectiva baseada na liberdade pode levar em conta “o interesse do utilitarismo[1] no bem-estar humano, o envolvimento do libertarismo[2] com os processos de escolha e a liberdade de agir, e o enfoque da teoria rawlsiana[3] sobre a liberdade formal e sobre os recursos necessários para as liberdades substantivas” (SEN, 2012, p.118).
Quando Sen fala de mercados, liberdade e trabalho - reconhece seus méritos. O enfoque tradicional costuma ser o dos resultados que esses mercados produzem, como por exemplo, as rendas ou utilidades geradas por eles. Mas para o autor, o argumento ainda mais importante em favor da liberdade de transações dos mercados baseia-se na importância fundamental da própria liberdade. “Temos boas razões para comprar e vender, para trocar e buscar um tipo de vida que possa prosperar com base nas transações” (SEN, 2012, p.151). Sen resgata a função ubíqua das transações da vida moderna, que com frequência passa despercebida e é desvalorizada, por parecer natural e inquestionável. Assim, a análise do desenvolvimento e o papel da ética empresarial elementar, segundo sua ótica, devem ser retirados da obscuridade e receber um reconhecimento.



[1] O Utilitarismo visa alcançar o maior valor da existência humana, a felicidade, não no sentido meramente individual, mas no aspecto coletivo. Economicamente, é também a vantagem de todos que deve servir de parâmetro para se tomar ou não uma decisão, ciente de que ela é ou não correta.
[2] Na área civil, o Libertarismo defende todas as liberdades individuais e se opõe a todas as tentativas do governo de moldar as vidas dos cidadãos. Na área econômica, o Libertarismo contesta o direito do governo de restringir o livre comércio de qualquer forma ou forçar os cidadãos a financiar através de impostos projetos que eles jamais apoiariam num ambiente de livre mercado.
[3] A Teoria da Justiça de John Rawls: no quadro do liberalismo social de hoje, retoma a discussão ocorrida nos tempos da Grécia Antiga, na "República", de Platão. Ocasião em que, por primeiro, debateu-se quais seriam os fundamentos de uma sociedade justa. Para Rawls os seus dois pressupostos são: 1) igualdade de oportunidade aberta a todos em condições de plena equidade e: 2) os benefícios nela auferidos devem ser repassados preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade, os worst off, satisfazendo as expectativas deles, porque justiça social é, antes de tudo, amparar os desvalidos. Para conseguir-se isso é preciso, todavia, que uma dupla operação ocorra. Os better off, os talentosos, os melhor dotados (por nascimento, herança ou dom), devem aceitar com benevolência em ver diminuir sua participação material (em bens, salários, lucros e status social), minimizadas em favor do outros, dos desassistidos (RAWLS, 1997).

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Ed. Schwartz S.A., São Paulo, 2012
CORREIA, Beatriz S.; SILVA, Maclovia C.. Retrofit em baldios urbanos industriais: uma estratégia de desenvolvimento. Barcelona: NEA, 2015