Considerando que a
arquitetura atende às necessidades das pessoas em conjuntura histórica e social,
as edificações vão perdendo a sua finalidade e necessitam de adequação no tempo
e no contexto da atualidade: usos, normas, tecnologias e funcionalidade. Existe
um serviço de renovação nomeado de retrofit
que mantém as características originais do prédio, prolonga sua vida útil e
pressupõe uma interferência integral.
A renovação de
elementos arquitetônicos demanda a instalação de dispositivos técnicos
fabricados em tempo diverso dos existentes. Dessa forma, arquitetos estabelecem
relações entre o uso da ferramenta do retrofit
e as inovações tecnológicas. Quando os recursos tecnológicos aplicados aos
projetos inserem-se na realidade das condições do edifício, surge um novo campo
de atuação para que o profissional possa dar uma utilização adequada às velhas
edificações.
Cabe aos gestores da
construção civil, em particular aos que irão embrenhar-se na recuperação,
manutenção e restauração de edifícios, considerarem que os aspectos ambientais
de uma construção são tão relevantes quanto os aspectos técnicos e econômicos,
considerando que mesmo um retrofit
causaria impacto no meio natural. Assim, adotarem uma postura técnica que
contribua para minimizar tais impactos utilizando tecnologia limpa e não poluente
utilizada em pequena ou grande escala que possua a possibilidade de ser
absorvida pela sociedade como um todo (MORAES; QUELHAS, 2012, p. 451).
A forma como se resgata
a memória histórica de um imóvel é outro aspecto das atuações sobre os
processos de decomposição de um edifício. Halbwachs (2015) adverte que a história não é
tudo que fica no passado, pois existe uma história viva que se imortaliza ou se
reaviva no tempo produzindo novos modelos. Na cidade de Presidente Prudente, no
Estado de São Paulo, arquitetos fizeram ressurgir elementos da memória
histórica do período modernista (1950) retratado em uma residência por meio da
técnica do retrofit.
Projeto de reforma e
interiores de uma residência com características modernistas na cidade de
Presidente Prudente, elaborado para a disciplina de interiores comercial, da
pós- graduação de arquitetura de interiores, em parceria com as Arquitetas
Camila Zorato e Natâni Rumin. Esse projeto visa realizar um retrofit sem criar um falso-histórico,
portanto, buscou-se preservar os elementos modernistas e elementos históricos
da residência, restaurando-os, como o revestimento de pastilha, pilotis e o
piso de taco, e realizar uma intervenção contemporânea, porém mantendo o
equilíbrio entre os elementos, resultando no projeto do Café Retrô (PORTFÓLIO, 2015).
O conceito de memória,
segundo o filósofo e sociólogo Maurice Halbwachs (2015), remete às recordações
e lembranças individuais armazenadas. Estas, porém, nunca estão
descontextualizadas de testemunhos de um grupo específico que reforça ou
enfraquece uma informação. Não se pode negar a subjetividade de reflexões, contudo
ela tem limites. Existem laços sociais que materializam discursos individuais e
compartilham identidades e significados.
Para a arquiteta Lina
Bo Bardi a intenção do retrofit é
interferir em uma construção existente utilizando a linguagem contemporânea. Ela
explica o que seria o cerne do retrofit:
"Na prática, não existe o passado. O que existe hoje e não morreu é o
presente histórico. O que você tem que salvar - salvar não, preservar - são
certas características típicas de um tempo que pertence ainda à
humanidade" (VERNILO et al., 2015, p. 937).
Jacques Le Goff,
historiador francês, reconhece o trabalho de Halbwachs para buscar conceituar
aspectos deste tempo e acrescenta a ideia de existirem lutas pelo poder com o
intuito de selecionar lembranças que permanecem nas relações contínuas entre o
presente e o passado. Lavabre (2015), em seu artigo sobre usos e desusos (mesusages) dá uma noção de memória e
afirma que o conceito resiste às polissemias, às cronologias de significações,
à falta de consensos, críticas, e que esse conceito, apesar de tudo, continua
existindo como fenômeno social.
Souvenir de l’expérience
vécue, commémorations, archives et musées, mobilisations politiques de
l’histoire ou “invention de la tradition”, monuments et historiographies,
conflits d’interprétation, mais aussi oublis, symptômes, traces incorporées du
passé, occultations et falsifications de l’histoire: la “mémoire” embrasse
décidément trop et signale par là-même le caractère métaphorique de son usage (LAVABRE,
2015, p. 48)[1].
A memória individual,
impregnada de tudo citado pela autora, é uma atividade construtiva e racional
da mente, com suas dimensões imaginativas e sensoriais, composta de
sentimentos, palavras e ideias, esboça pontos de vista de um ambiente e de
relações estabelecidas entre os integrantes de um grupo.
Quanto mais inseridos
estão os sujeitos em um grupo, mais condições eles têm de retomar “as suas
memórias como também de contribuírem para a recuperação e perpetuação da
memória do grupo” (LEAL, 2015, p. 6), agregando pareceres e relatos que os
identificam. O passado é reconstruído a partir do presente, direcionado pela
vontade de organizar as representações.
A identificação de um contexto temporal que particulariza aquele
acontecimento diante de muitos outros pode possibilitar que ele seja lembrado
por meio de vestígios que se destacam quando pensamos no momento em que ele
ocorreu. Nas palavras de Halbwachs (2006, p. 156), “os limites até onde
retrocedemos assim no passado são variáveis segundo os grupos e é o que explica
porque os pensamentos individuais conforme os momentos (...) atingem lembranças
mais ou menos remotas” (LEAL, 2015, p.6-7).
O retrofit é uma ferramenta de revitalização que faz uso das
tecnologias dos materiais para manter lembranças perdidas e atender às
necessidades de eficiência e conforto dos usuários da cidade. Nas práticas, são
empregados recursos diversos daqueles aplicados em reformas para modernizar e
readequar instalações e equipamentos. A forma de trabalhar diferenciada da
convencional enfrenta os desafios dos riscos, da imprevisibilidade, da
produtividade, do planejamento e da mão-de-obra.
No conceito do termo retrofit estão presentes duas ações
obrigatórias que o caracterizam na ambientação: (a) mudança de uso; e (b)
renovação do que era retrógrado com a permanência da obra arquitetônica. Em
outras palavras, pode-se dizer que uma história esconde-se atrás de novas obras
e fica coerente com o presente. Seria como dar validade a estruturas e
fundações de qualidade de uma edificação que estava esquecida, abandonada,
deteriorada... Um exemplo ilustrativo é o caso “Saúde · Retrofit”, uma obra realizada para o IX Grande Prêmio de
Arquitetura Corporativa.
A proposta
arquitetônica do projeto apresentado pela DASA tem como foco o bem-estar do
paciente. Há uma atenção especial aos espaços de espera, estar e contemplação,
marcados pela diversidade de materiais cujo objetivo é amenizar o caráter
institucional e impessoal que normalmente os ambientes de saúde apresentam. A
decoração deixa bem clara a intenção, de mesclar o antigo e novo, respeitando a
riqueza da arquitetura do edifício - um casarão de estilo eclético, tombado em
nível municipal no final do século XX. (MORAIS, 2015, p. 34).
O
retrofit pode também estar refletido além
da arquitetura também na decoração, pois ao mesmo tempo dissolve as finalidades
projetadas para edifícios históricos sem deixar de falar do seu passado e cogitar
seu futuro. São readaptações que portam e ostentam títulos como indústria,
palácio, clube, hípica e outros, mas que têm usos internos pendentes,
imprevisíveis e incompletos que dependem de manutenção e consumo. Sem deixar de representar a arquitetura da
época, a plástica contribui para que ele permaneça no tempo e no conjunto urbano.
“O propósito do retrofit [é] a renovação
arquitetônica do edifício e a ampliação dos espaços internos para atender uma
maior demanda da empresa, [instituição] ocupante” (WERTHEIMER, 2015, p. 43). No
retrofit feito na sede corporativa da Roche Pharma
[...] foi adicionado ao
edifício original, um novo pavimento construído em estrutura metálica com a
inclusão de um grande pórtico para valorizar a entrada e a recepção. Elementos
não estruturais de fachada foram removidos, possibilitando maiores vãos com
esquadrias e vidros de última geração, maximizando o aproveitamento da
iluminação natural e a apreciação do jardim. Uma nova prumada de elevadores foi
criada para adequar o fluxo vertical ao aumento da área útil dos pavimentos,
tendo sido também necessária a criação de uma nova escada de emergência. Todas
as instalações e infraestruturas foram modernizadas. De forma inovadora, o
projeto alia modernidade e conforto. O pavimento térreo abriga áreas para
visitantes, salas de reunião multifuncionais, cafés e pátios internos para reuniões informais e descanso
(WERTHEIMER, 2015, p. 43).
A passagem do tempo nos diz que o edifício pode ou não
permanecer atraente. Então, seriam necessárias ações de renovação e mudança de
uso para adquirir outra representatividade? Sim, pois o objeto arquitetônico
perdeu sua função e o espaço não mais condiz com as exigências técnicas e as
normas de segurança. Todavia, as adequações construtivas, preservando sua
originalidade, são feitas a partir de estudos criteriosos de viabilidade que
giram em torno de custos e benefícios.
No projeto da arquiteta
Betty Birger - um centro de treinamento regional do SEBRAE na cidade de São
Paulo - exemplifica os diferenciais encontrados em um projeto de retrofit comparado aos de uma reforma[2].
O desafio foi “metamorfosear” um edifício tradicional de oito andares em um
centro multidisciplinar para capacitar e formar os integrantes do Serviço
Brasileiro de Apoio de Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). Este espaço visa prover
pessoal treinado, incluindo a oportunidade de reciclar saberes e conhecimentos,
motivadores do desenvolvimento pessoal e profissional.
O novo ambiente deveria
refletir os conceitos da empresa que é inovadora, de vanguarda, empreendedora,
referência e conectada. Os espaços foram projetados visando a criação de recintos
que estimulem a integração e inovação, sustentáveis, inspiradores, flexíveis e
agradáveis. Adotamos como diretrizes: ambientes saudáveis (luz do dia / vista,
ar, temperatura); espaços e materiais sustentáveis; eficiência de energia;
“Future proofed” – capacidade para crescer e diminuir; móvel / mutável; o
espaço refletindo a imagem e cultura da empresa; acessível, confortável e
atrativo (BIRGER, 2015, p. 43).
É preciso que o retrofit, enquanto conceito aplicado na
arquitetura urbana valorize o imóvel e mude sua aparência envelhecida,
sobretudo aqueles situados em locais onde o potencial construtivo está
esgotado. Por isso, fazem parte desta técnica ações de demolição de partes da
construção existente, o reforço estrutural, os fechamentos internos, os
acabamentos, as substituições na rede hidráulica, elétrica e telefônica, a
climatização e intervenções nas fachadas e nos pisos.
Estas mudanças também
reduzem a carga térmica, o consumo de água, energia e as emissões de CO2,
quando privilegiados os materiais modernos como as placas solares, recursos de
controle solar (brises), sistemas de
aproveitamento das águas pluviais, iluminação e ventilação naturais, o uso de
técnicas e diversidade de materiais da construção sustentável. Mantém-se o compromisso com as
características da arquitetura original, simultaneamente renova-se a estrutura
e potencializa-se seu desempenho predial, compatibilizando-a com as restrições urbanas e
ocupacionais.
Outras ideias que estão
na raiz do conceito de retrofit
transcorrem por soluções corretivas, atualização tecnológica, preservação da
identidade, viabilidade econômica para o investidor e incorporação produtiva do
edifício no conjunto urbano. O conceito se
aplica também em grandes áreas urbanas e construções que apresentam limitações
estruturais e necessitam adequações geográficas e físicas.
Também chamado de
reciclagem tecnológica, esta modalidade construtivo-arquitetônica se aplica a
qualquer tipo de edificação. É uma alternativa sustentável de renovação, sobretudo
para aqueles imóveis bem localizados, patrimônios históricos e marcos
importantes, muitas vezes ícones socioculturais.
Em 1997, o governo dos
Estados Unidos da América escolheu o retrofit
para a modernização de um dos edifícios mais icônicos da história
americana: o Pentágono. O maior edifício administrativo do mundo era então um
dinossauro tecnológico, muito próximo da morte, com instalações elétricas, hidráulica
e lógica em ruínas, as quais continham inúmeros materiais tóxicos como amianto
e mercúrio, entre outros. Sua reabilitação estrutural e tecnológica nos moldes
de um retrofit custaria mais do que o
dobro da opção de fazer uma nova casa. Apesar dos custos, a opção do governo baseou-se
no indiscutível valor histórico e simbólico do edifício. O artigo
de Evey (2015), fala de seu papel na direção das obras de retrofit, quando pôde verificar como as pessoas estavam convencidas
do forte significado deste imóvel para o povo americano.
As the former manager of the Pentagon Renovation Program, I have often
listened as people have related […] their vivid memories of September 11,
2001[…]. More than U$4 billion were designated for these program, the largest
design and construction program of its type in U.S. history […] One truth gave
me hope: I was convinced that people strive and succeed not just for money and
not just because a book of regulations tells them to. They strive when they
believe in a cause and are led by people who share that belief and are willing
to personally sacrifice to reach those common goals (EVEY, 2015)[3].
Entretanto, o projeto de retrofit do Pentágono tomou uma
importância muito maior com o advento dos ataques terroristas de 2001. Aos planos iniciais foram adicionadas ações
de segurança antes não previstas, tais como vidros térmicos antibombas, paredes
de concreto duplicadas e uma tela interna que amparasse estilhaços de
alvenaria. Pode parecer ilógico, mas o edifício do Pentágono levou 16 meses
para ser construído, e no entanto, exigiu 16 anos para ser modernizado. Uma
obra hercúlea baseada mais no valor sentimental de uma nação do que
propriamente no sentido prático e financeiro, o que vem a corroborar com ideia
de preservação e conservação de valores culturais e simbólicos por grupos
relevantes ou mesmo uma nação inteira.
[1] Lembrança de experiência vivida, comemorações,
arquivos e museus, mobilizações políticas da história ou “invenção da
tradição”, monumentos e historiografias, conflitos de interpretações, mas
também esquecimentos, sintomas, traços incorporados do passado, ocultações e
falsificações da história: a “memória” abraça decididamente, em excesso, e
assinala por aqui mesmo o caráter metafórico de seu uso (tradução livre).
[2] Reforma é o “ato ou efeito de reformar; mudança para
melhor; melhoramento; conserto; reparação; modificação; reorganização,
substituição de objetos fora de uso; nova forma, intervenção que busca o
retorno à função original [...] sem preocupação quanto à preservação” (FLEMMING; QUALHARINI; 2015, p.
5).
[3] Como o
ex-gerente do Programa de Renovação do Pentágono, muitas vezes tenho escutado
como as pessoas têm relacionado [...] às suas memórias vívidas de 11 de
Setembro de 2001 [...] mais de U$ 4 bilhões foram destinados ao projeto, o
maior programa de concepção e construção de seu tipo na história dos EUA [...]
Uma verdade me deu esperança: eu estava convencido de que as pessoas se
esforçam pelo sucesso não apenas por dinheiro, e não apenas porque um livro de
regulamentos lhes diz isso. Elas se esforçam quando acreditam em uma causa e
são lideradas por pessoas que compartilham essa crença e estão dispostas a se
sacrificarem pessoalmente para alcançar objetivos comuns (Evey, 2015).
BIBLIOGRAFIA:
BIRGER, Betty.
Centro empreendedor. Disponível em:
<http://www.flexeventos.com.br/_pdfs/publicacoes/arquishow-721.pdf>. Acesso
em: 31 mar. 2015.
EVEY,
Walker Lee. The Secrets to the Pentagon
Renovation Program's Success. How one of the nation's largest
reconstruction projects was completed ahead of schedule and under budget. Disponível em:
<http://www.constructionbusinessowner.com/management/workforce-management/september-2014-secrets-pentagon-renovation-programs-success>.
Acesso em: 3 mai. 2105.
HALBWACHS,
Maurice; DÍAZ, Amparo Lasén. Memoria
colectiva y memoria historica. Disponível em:
<http://www.jstor.org/discover/10.2307/40183784?sid=21106328522163&uid=2&uid=3737664&uid=4>. Acesso em: 23 mar. 2015.
LAVABRE, Marie-Claire. Usages et mésusages de la
notion de mémoire. Disponível em:
<http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/criti_1290-7839_2000_num_7_1_1560>.
Acesso em: 16 abr. 2015.
LEAL, Luana Aparecida Matos. Memória, rememoração e
lembrança em Maurice Halbwachs. Disponível em:
<http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao18/artigos/045.pdf>.
Acesso em: 15 abr. 2015.LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Ed.
Unesp,1997.
MORAES,
Virgínia Tambasco Freire; QUELHAS,
Osvaldo Luiz Gonçalvez. Desenvolvimento da metodologia e os processos de um
“retrofit” arquitetônico. Sistema &
Gestão, n. 7, 2012, p. 448-461.
MORAIS,
Leonardo. Laboratório lâmina: DASA – gestão de projetos e obras. Disponível em:
<http://www.flexeventos.com.br/_pdfs/publicacoes/arquishow-721.pdf>.
Acesso em: 31 mar. 2015.
PORTFÓLIO -
Proposta retrofit rara residência modernista. Disponível em:
<http://auemrede.au.pini.com.br/emrede/membro/thays-carolina-carrion-lorente/proposta-retrofit-para-residencia-modernista-17670.asp>.
Acesso em: 24
abr. 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários e opiniões postados nesta página não correspondem necessariamente à opinião da blogger.